radicaos
memórias em quatro acordes

Temporada de Rock - 1983

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Noite do dia 15 de abril de 1983. L2 Sul. Quadra 616. Quase meia noite. Cerca de 50 pessoas aguardam a abertura da porta do Auditório da Associação Brasileira de Odontologia. Alguns garotos com roupas rasgadas e meninas de visual diferente olham com cara blasé os cabeludos tradicionais. Começava ali a ganhar corpo o rock brasiliense da década de 80 que iria sacudir o país dois anos depois. Era a Temporada de Rock, a primeira iniciativa conjunta de cinco grupos seminais da cidade: Banda 69, Plebe Rude, Legião Urbana, XXX e Capital Inicial.

Durante três finais de semana, a sortuda molecada que botou os pés na ABO teve a oportunidade de presenciar o nascimento de lendas do rock nacional. Foi neste pequeno palco que Dado Villa Lobos estreou na Legião Urbana. E que Dinho Ouro Preto ganhou confiança para cantar, embora não tenha participado do show. Ficou na mesa de som, assistindo à performance de sua futura banda, que tinha como vocalista a gostosa Heloísa, estudante de arquitetura da UnB e amiga dos irmãos Lemos. O espetáculo foi produzido pela Candango Produções Artísticas. Um evento de fôlego, começando no dia 15 e terminando no dia 30. Pode parecer incrível, mas a cada noite, não mais que cem pessoas foram assistir aos shows.

A abertura do dia 15 ficou por conta da Banda 69, formada por Marcelo Carvalho, Murilo Carvalho, Rodrigo Lopes e Militão Ricardo. Os quatro se conheceram no Colégio Dom Bosco, durante um festival de música. Dividiam a fissura pelos Beatles e logo tomaram coragem para montar a própria banda. O grupo estreou na Expoarte 81, realizada na Universidade de Brasília. E, ainda naquele mesmo, ano dividiu o palco com a lendária Aborto Elétrico, durante um show realizado em Goiânia. "Foi o pessoal do Aborto quem abriu o caminho para nós e outros grupos", reconheceria o próprio Murilo.

"Este é o primeiro show que a gente faz com uma produção bem cuidada", anunciava o guitarrista da 69, em entrevista a Irlam Rocha Lima, do Correio Braziliense. "A gente vem trabalhando em cima de tudo. Com a ajuda do poeta Nicolas Behr, criamos um cenário, que tem ao fundo um muro pichado. Com a ajuda de dois estudantes de Comunicação da UnB, produzimos um filme de 25 minutos de duração, que é uma espécie de história do grupo. Esse filminho será exibido". No repertório do quarteto, clássicos do grupo: Maria Gasolina, Precisa-se e Doido Varrido, além de covers dos eternos Beatles.

A apresentação levantou a carreira da Banda 69, que passaria a ser uma das mais atuantes bandas da cidade. Logo o grupo estaria dividindo a atenção de crítica e público, tentando cruzar o Brasil três anos depois com um disco lançado pela CBS e que teria a participação de Herbert Vianna em uma faixa. A produção da bolacha ficou a cargo do miquinho Léo Jaime.

Ao lado da 69, quatro promessas de revolução estética ousariam trazer a palavra punk para o entediado cotidiano candango. "Fomos ensinados a consumir o que vem de fora e se hoje somos o que somos, não é culpa nossa", resumia um ingênuo e juvenil Renato Russo ao atento Irlam, que não teve dúvidas: tascou o movimento em reportagem publicada pelo Correio no dia 22 de abril, sob o título "Os punks também estão chegando. Eles vão abrir a Temporada de Rock".

No texto escrito por Irlam, Renato mandava ver, traçando um panorama do que passava pela cabeça da molecada que estava por vir a atacar o país de maneira visceral: "Toda a nossa geração aprendeu a gostar de Beatles, Stones, filmes americanos e coca-cola. Além disso, quando a gente começou a curtir música brasileira, Caetano Veloso estava exilado em Londres e Gal Costa cantava em inglês ‘Oh my eyes, we're looking for flying saucers in the sky...’, e tudo que era nacional e dirigido aos jovens era modelo importado".

Renato vinha do Aborto Elétrico e acabara de formar a Legião ao lado de Marcelo Bonfá. O duo tinha como parceiros de jornada os amigos Eduardo Paraná, guitarrista egresso do grupo Boca Seca, e o tecladista Paulo Paulista. Em dezembro de 1982, com essa formação, a Legião abriu o show para a carioca Blitz (Você não soube me amar era hit em 1982), no Clube dos Servidores. Os dois amigos saíram pouco tempo depois, dando lugar a Ico Ouro Preto, irmão de Dinho, que amarelou e não consigou segurar a onda. Tinha pânico de palco. Dado entrou faltando duas semanas para o show da ABO. Uma estréia promissora.



O show da Legião foi o marco. Para mim, que assisti à apresentação meio sem entender nada, ao lado de um amigo cabeludo, foi um choque. Renato tinha empatia instantânea com o público e dominava a cena sem problemas. Logo de cara, a guitarra de Dado deu pane, e Renato nem teve dúvidas. Improvisou com o público, atacando um mantra maluco, a quem ele sempre recorria, desde os tempos do Aborto, chamado Adhan. Consistia num rock quatro por quatro, básico, em que o público gritava "adhan", progressivamente, sob o comando do carismático líder da Legião. A íntegra deste show da banda de Russo você encontra aqui.

Apesar de ser a Legião, a banda mais importante a subir no palco da ABO era, na verdade, a Plebe Rude. O grupo surgira dois anos antes, quando André Müeller largara Os Metralhaz para juntar-se a Philippe Seabra, líder do finado Caos Construtivo. Os dois formaram a banda com Gutje, ex-Blitx 64. Segundo a lenda, repetida pelo baterista na conversa com Irlam, o vocalista Ameba foi convocado numa festa. "Ele estava bêbado, com um copo de gim na mão e cantando", registrou o repórter do Correio. "Marginalizados porque são roqueiros e ainda mais porque curtem o lance do punk, o pessoal da Plebe Rude está indo à luta. Agora cheio de esperança, com a descoberta do rock pelo mercado de disco no Brasil".

Ao lado das duas bandas irmãs, estavam o Capital Inicial e o XXX. Os dois grupos mal começavam a andar com as próprias pernas. A banda nova dos co-fundadores do Aborto, os irmãos Fê e Flávio Lemos, tinha estreado pouco tempo antes, numa festa promovida no ateliê do Departamento de Arquitetura da UnB. Enquanto o XXX era o embrião da Escola de Escândalos, ainda sem a guitarra endiabrada de Fejão e a batida correta de Balé. No lugar dos dois, atuavam Jeová Stemler e Alessandro. O grupo tinha recém feito uma apresentação no Brasília Urgente, programa da extinta TV Brasília.

Aqui, cabe uma curiosidade. Um texto escrito pelo próprio Renato para ser distribuído aos fãs, antes da apresentação, mas - sabe-se lá por quais circunstâncias, não há qualquer menção à Banda 69.

Eis a íntegra:
"Os componentes dos quatro conjuntos fazem parte do que era conhecido como "a turma da colina da UnB", isso por volta de 1977, época da abertura e da redemocratização (embora a UnB ainda apresentasse alguns problemas). Um maço do Hollywood estava por volta de Cr$ 15,00 e, na cidade, não existia nada para se fazer. Mas aparece então o que iria acabar de vez com a pouca identidade que a capital tinha com a música discoteca.

Brasília deixa de ser Brasília e passa a ser Rio de Janeiro, como o País inteiro. Para quem gostava de rock, esse foi o fim. Basta ser chamado de colonizado o tempo todo; com a moda disco a situação piora sensivelmente. Ainda mais porque na mesma época aparece um movimento original e anárquico que pretende acabar com os falsos modismos. É a moda levada ao extremo: antimoda, antiestética, antitudo.

Mas aqui é bem mais fácil controlar a juventude oferecendo a válvula de escape ideal e não uma música que faça todos pensarem e questionarem as hipocrisias construtivas de uma sociedade falsa, à beira da autodestruição atômica. Ha-ha. Música discoteca não fala desse feito. E a música popular brasileira parece estar mais preocupada com cama e mesa e a sensação das cordilheiras.

E o pessoal que faz letras espertas não gosta de tocar rock no Brasil. O que fazer? Será que estão todos satisfeitos? Rock é uma atitude, não é moda. É música da África. Não é música americana. Tem no mundo inteiro.

As apresentações tornaram-se lendárias. Nem tanto pelo som, mas pelo que todas essas bandas se transformariam anos depois.



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