radicaos
memórias em quatro acordes

Legião Urbana: O petróleo do futuro

domingo, 9 de setembro de 2007

Em janeiro de 1985, chegava às lojas de todo o país o disco Legião Urbana. Os acordes de Será começariam a tocar, ainda que timidamente, nas rádios brasileiras só dali a alguns meses. Ainda naquele mesmo mês, o país assistiria à primeira superprodução de rock em terras tupiniquins, com artistas internacionais desembarcando nos palcos do Rock in Rio. Janeiro seria marcado também pela vitória de Tancredo Neves, candidato do PMDB à Presidência da República, no colégio eleitoral, impondo uma derrota ao candidato da ditadura, Paulo Maluf, no dia 15 de janeiro.

Ninguém poderia imaginar que naquele mês nascia, nos estertores da ditadura militar e no renascimento da democracia brasileira, uma face do país até então desconhecida para a opinião pública: a juventude brasileira pós-64 pensava! E tinha voz própria.

Gravado entre outubro e dezembro de 1984, o disco chegaria às lojas com o início do processo de redemocratização do Brasil e o nascimento da Nova República. "A gente tem esperança que as coisas vão melhorar. É daqui de Brasília que vai surgir a garotada nova, com idéias novas, não só na música, mas no campo das artes em geral", previa Renato Russo. "Para o futuro, planejamos muita música, muitos agitos, muito trabalho e tudo de bom".

Os jovens de Brasília – o fenômeno da arquitetura nacional planejada em 57, filha bastarda do gênio de Oscar Niemeyer e dos sonhos visionários e populistas de Juscelino Kubitschek – ousavam mostrar que eram capazes de produzir música com um discurso articulado. Pela poesia contundente, esboçavam o que queriam e deixavam claro que tinham uma posição. “Depois de vinte anos na escola / Não é difícil aprender / Todas as manhas do seu jogo sujo / Não é assim que tem que ser / Vamos fazer nosso dever de casa / E aí então, vocês vão ver / Suas crianças derrubando reis / Fazer comédia no cinema com as suas leis”, cantava Renato em Geração Coca Cola. Nas demais canções do disco, os sentimentos apontavam rumos e indignações.

O disco trazia a urgência de uma moçada ansiosa, reflexiva e inquieta, que estava submetida a 20 anos de ditadura sem poder se expressar. Quem cresceu em Brasília nos anos 70 sabe que se a ditadura impunha sua vontade à força, era na capital da República que o braço do Exército era sentido quase que imediatamente. Em 1977, o Exército ocupou a Universidade de Brasília (UnB) por conta dos protestos estudantis. Ora, os militares não aceitavam que moleques abrissem as bocas para reclamar justamente no quintal do Palácio do Planalto. Daí porque a percepção política é tão presente na temática das bandas brasilienses da década de 80. As letras da Plebe Rude, da Legião Urbana e, pouco menos, do Capital Inicial, sempre continham uma insatisfação com o estado geral das coisas.

O primeiro disco da Legião reflete muito essa época. A poesia de Renato mirava os militares, como em Geração Coca Cola. Mas também os costumes sociais, como em A Dança, uma crítica à juventude burguesa brasiliense. Também havia a própria inquietude juvenil presente, como em O Reggae. Além de paixões, como Ainda É Cedo. E sexo, em Teorema.

Um romantismo e uma pureza juvenil, com muita veracidade e eloqüência, estão presentes em todas as faixas, que remetem à Brasília e sua juventude. As referências sonoras também são muitas e mostravam que a banda estava antenada com o que fora produzido na Inglaterra dos anos 70, como o punk dos Sex Pistols, mas também no que estava rolando naquela época na terra da rainha, com o pós-punk de Comsat Angels, U2 e Joy Division.

Anti-marketing

Quando a EMI lançou o disco Legião Urbana, com produção do jornalista José Emílio Rondeau, foi sem muito estardalhaço ou estratégia de marketing. Não se sabe a que propósito, o lançamento teria sido mesmo um tiro no pé, seguido os manuais de propaganda atuais. Afinal, o disco veio à luz bem no meio do Rock In Rio. E a banda, como se sabe, não estava naqueles palcos, que levaram à aclamação, contudo, de uma banda irmã da Legião: os Paralamas do Sucesso. O grupo carioca-brasiliense foi quem abriu as portas da gravadora para a Legião. Herbert, Bi e Barone tinham gravado dois anos antes duas músicas de Renato Russo no primeiro LP, Cinema Mudo, chamadas Química e O que eu não disse.

O fato de a banda ter apostado numa major para lançar seu primeiro álbum não desagradava Renato Russo. “É a única maneira de ver o seu produto bem divulgado, já que a produção independente, além de muito cara, atinge só a um público de elite", definiu, ainda na época, em uma entrevista concedida à jornalista Wilma Lopes, do Jornal de Brasília. "Há o lado negativo, mas este é contrabalançado pelas vantagens do lado positivo, que é bem maior. Com jeito, se faz muita coisa. Conseguimos fazer o disco como queríamos, desde a escolha da música até a capa e o encarte".

Ao longo daquele ano, as músicas da Legião foram ganhando as rádios uma a uma. O disco quase todo virou uma seleção de hits, que se sucediam nas rádios. Até hoje o CD está no catálogo da EMI e vende muito bem. Soma mais de um milhão o número de cópias vendidas em mais de duas décadas.

Muito mais do que um fenômeno musical no mercado fonográfico brasileiro durante esses últimos 20 anos, a música feita em Brasília no início dos anos 80 é o retrato perfeito de uma época em que valores éticos e morais eram incipientes e o grito de consciência emergiria naquele país ainda tão profundamente ansioso por construir seu futuro. Renato Russo era o rosto mais visível do que seria conhecido dali para frente como o Rock Brasília.

O disco Legião Urbana mudou o rock brasileiro e, mesmo esse tempo todo depois de ter sido lançado, ainda mantém frescor e jovialidade invejáveis. Estranho fenômeno musical, que chegou a surpreender a mídia e os cartolas do mercado fonográfico nacional, o rock feito em Brasília era diferente do resto feito no país. O disco é hoje um clássico e talvez seja uma das melhores estréias de uma banda brasileira de todos os tempos.

A Legião abriu as portas para o rock brasiliense, firmou-se como opção estética, rendeu frutos e filhotes nos anos 90 – Raimundos, Little Quail and The Mad Birds, Pravda e Maskavo Roots – e agora, vinte anos depois, com Prot(o), Beto Só, Phonopop e Bois de Gerião.

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