Legião Urbana: O petróleo do futuro

Ninguém poderia imaginar que naquele mês nascia, nos estertores da ditadura militar e no renascimento da democracia brasileira, uma face do país até então desconhecida para a opinião pública: a juventude brasileira pós-64 pensava! E tinha voz própria.
Gravado entre outubro e dezembro de 1984, o disco chegaria às lojas com o início do processo de redemocratização do Brasil e o nascimento da Nova República. "A gente tem esperança que as coisas vão melhorar. É daqui de Brasília que vai surgir a garotada nova, com idéias novas, não só na música, mas no campo das artes em geral", previa Renato Russo. "Para o futuro, planejamos muita música, muitos agitos, muito trabalho e tudo de bom".
Os jovens de Brasília – o fenômeno da arquitetura nacional planejada em 57, filha bastarda do gênio de Oscar Niemeyer e dos sonhos visionários e populistas de Juscelino Kubitschek – ousavam mostrar que eram capazes de produzir música com um discurso articulado. Pela poesia contundente, esboçavam o que queriam e deixavam claro que tinham uma posição. “Depois de vinte anos na escola / Não é difícil aprender / Todas as manhas do seu jogo sujo / Não é assim que tem que ser / Vamos fazer nosso dever de casa / E aí então, vocês vão ver / Suas crianças derrubando reis / Fazer comédia no cinema com as suas leis”, cantava Renato em Geração Coca Cola. Nas demais canções do disco, os sentimentos apontavam rumos e indignações.
O disco trazia a urgência de uma moçada ansiosa, reflexiva e inquieta, que estava submetida a 20 anos de ditadura sem poder se expressar. Quem cresceu em Brasília nos anos 70 sabe que se a ditadura impunha sua vontade à força, era na capital da República que o braço do Exército era sentido quase que imediatamente. Em 1977, o Exército ocupou a Universidade de Brasília (UnB) por conta dos protestos estudantis. Ora, os militares não aceitavam que moleques abrissem as bocas para reclamar justamente no quintal do Palácio do Planalto. Daí porque a percepção política é tão presente na temática das bandas brasilienses da década de 80. As letras da Plebe Rude, da Legião Urbana e, pouco menos, do Capital Inicial, sempre continham uma insatisfação com o estado geral das coisas.
O primeiro disco da Legião reflete muito essa época. A poesia de Renato mirava os militares, como em Geração Coca Cola. Mas também os costumes sociais, como em A Dança, uma crítica à juventude burguesa brasiliense. Também havia a própria inquietude juvenil presente, como em O Reggae. Além de paixões, como Ainda É Cedo. E sexo, em Teorema.
Um romantismo e uma pureza juvenil, com muita veracidade e eloqüência, estão presentes em todas as faixas, que remetem à Brasília e sua juventude. As referências sonoras também são muitas e mostravam que a banda estava antenada com o que fora produzido na Inglaterra dos anos 70, como o punk dos Sex Pistols, mas também no que estava rolando naquela época na terra da rainha, com o pós-punk de Comsat Angels, U2 e Joy Division.
Anti-marketing
Quando a EMI lançou o disco Legião Urbana, com produção do jornalista José Emílio Rondeau, foi sem muito estardalhaço ou estratégia de marketing. Não se sabe a que propósito, o lançamento teria sido mesmo um tiro no pé, seguido os manuais de propaganda atuais. Afinal, o disco veio à luz bem no meio do Rock In Rio. E a banda, como se sabe, não estava naqueles palcos, que levaram à aclamação, contudo, de uma banda irmã da Legião: os Paralamas do Sucesso. O grupo carioca-brasiliense foi quem abriu as portas da gravadora para a Legião. Herbert, Bi e Barone tinham gravado dois anos antes duas músicas de Renato Russo no primeiro LP, Cinema Mudo, chamadas Química e O que eu não disse.
O fato de a banda ter apostado numa major para lançar seu primeiro álbum não desagradava Renato Russo. “É a única maneira de ver o seu produto bem divulgado, já que a produção independente, além de muito cara, atinge só a um público de elite", definiu, ainda na época, em uma entrevista concedida à jornalista Wilma Lopes, do Jornal de Brasília. "Há o lado negativo, mas este é contrabalançado pelas vantagens do lado positivo, que é bem maior. Com jeito, se faz muita coisa. Conseguimos fazer o disco como queríamos, desde a escolha da música até a capa e o encarte".
Ao longo daquele ano, as músicas da Legião foram ganhando as rádios uma a uma. O disco quase todo virou uma seleção de hits, que se sucediam nas rádios. Até hoje o CD está no catálogo da EMI e vende muito bem. Soma mais de um milhão o número de cópias vendidas em mais de duas décadas.
Muito mais do que um fenômeno musical no mercado fonográfico brasileiro durante esses últimos 20 anos, a música feita em Brasília no início dos anos 80 é o retrato perfeito de uma época em que valores éticos e morais eram incipientes e o grito de consciência emergiria naquele país ainda tão profundamente ansioso por construir seu futuro. Renato Russo era o rosto mais visível do que seria conhecido dali para frente como o Rock Brasília.
O disco Legião Urbana mudou o rock brasileiro e, mesmo esse tempo todo depois de ter sido lançado, ainda mantém frescor e jovialidade invejáveis. Estranho fenômeno musical, que chegou a surpreender a mídia e os cartolas do mercado fonográfico nacional, o rock feito em Brasília era diferente do resto feito no país. O disco é hoje um clássico e talvez seja uma das melhores estréias de uma banda brasileira de todos os tempos.
A Legião abriu as portas para o rock brasiliense, firmou-se como opção estética, rendeu frutos e filhotes nos anos 90 – Raimundos, Little Quail and The Mad Birds, Pravda e Maskavo Roots – e agora, vinte anos depois, com Prot(o), Beto Só, Phonopop e Bois de Gerião.
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